Como se decide? Porque se decide partir para fazer 550 km a pé com uma mochila às costas?
Sempre que preciso de fazer o que designo de purga (social leia-se), sair da zona de conforto, faço uma viagem destas, algumas delas no Caminho de Santiago. Desta vez escolho o Caminho del Salvador que liga Léon a Oviedo, seguindo-se o Primitivo até Santiago e daí o prolongamento até Finisterra e Muxía.
Na Gare do Oriente entro num autocarro para Salamanca que tal como na música dos Xutos, “Ainda não tinha saído e já estava atrasado”. Até Salamanca são nove horas de distância e um transbordo em Albergaria.
Em Vilar Formoso apanho um controlo de fronteira na Europa comunitária. Uma cidadã chinesa é interpelada pelo polícia que lhe pede o passaporte e o leva para o posto. O autocarro fica ali parado à espera até que a situação se resolva. Demorou tanto tempo que estava a disposto a legalizá-la eu próprio só para podermos seguir. Ela manteve-se ali impávida e serena. Não lhe vi os olhos arregalarem-se. Não se arredondaram nem um bocadinho.
Chego a Salamanca a tempo de comprar o bilhete para Léon e um pouco de comida para os primeiros dias. No dia seguinte é quinta-feira de Páscoa e até sábado está tudo fechado.
Entro num autocarro apinhado de estudantes que regressam a casa para a Semana Santa para efectuar o derradeiro trajecto de três horas desta odisseia. Quando chego, ao fim de tantas horas, penso que me enganei e fui até à Escandinávia.
Mas o que eu quero é caminhar e de manhã bem cedo começo o itinerário que me levará a Oviedo em 4 etapas, atravessando a Cordilheira Cantábrica coberta de neve, pastos, pequenos povoados onde o silêncio só é quebrado pelos cães e onde o perfume a lenha queimada é uma constante.
Chego a Oviedo no domingo de Páscoa, mesmo a tempo de assistir à Procissão del Resucitado, onde as confrarias de homens encapuzados percorrem as ruas do centro histórico seguidas do andor com a imagem de Jesus Cristo. Segue-se uma fababa de javali para tirar a barriga de misérias.
Com a dureza das primeiras etapas surgem as dores no corpo, até nos adaptarmos ao peso da mochila e à frequência de caminhadas, mas a vontade de continuar, e o apelo do caminho são o melhor tónico.
O Caminho Primitivo, apesar de seguir o itinerário seguido por Afonso II no séc. IX aquando da primeira peregrinação a Campus Stellae, é dos menos percorridos. Assim, é possível encontrar o isolamento, observar inúmeros animais e visitar antigos hospitais de peregrinos em ruínas, sempre com as montanhas e vales cobertos de nuvens como pano de fundo
No caminho aprendemos a separar o essencial do acessório, despojamo-nos de quase tudo o que não interessa e regressamos aos nossos instintos mais básicos. O nosso cérebro passa a funcionar em função do que vamos comer, onde iremos obter essa a comida (que nos locais mais isolados pode ser difícil), onde nos abrigaremos durante a noite. Quando chego ao albergue, lavo roupa para aproveitar o maior número de horas sol possível, tomo duche e só depois preparo uma refeição. No fundo, sou uma autêntica “fada do lar”.
O Caminho quando feito a solo é muito introspectivo. Tempo para pensar é o que não falta, e essa é uma das maiores mais-valias que podemos tirar de uma experiência destas.
Quando chego a Santiago vejo inúmeros peregrinos sentados na Praça do Obradoiro, após a missa ao final da manhã em que assistiram à impressionante cerimónia em que o botafumeiro percorre a nave da catedral balançando sobre as nossas cabeças e abraçarem a imagem do Santo. São os rituais associados à chegada ao destino final.
Revêem-se caras com que nos cruzámos num qualquer bosque, num qualquer albergue, vêem-se sorrisos, vêem-se lágrimas, vêem-se muitos coxeando para lá e para cá. São marcas da vontade, da perseverança, do alento que muitos procuram neste Caminho.
Como um polvo à Gallega e uns pimentos de Padrón para comemorar, mas a minha viagem não termina aqui.
Sigo para oeste até ao cabo Finisterra onde admiro o pôr-do-sol, como um pagão na Era Pré-Cristã. Não cumpro a tradição de queimar a roupa. Não porque não tenha pecados e não precise de purificar a alma, mas apenas porque ainda continuarei até Muxía. Aí sim, termino este périplo de onde certamente regresso uma pessoa diferente. E essa sensação é o melhor que uma viagem nos pode dar.
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12 comentários:
Olá Tiago,
Já tive a oportunidade de lho dizer mas volto a repetir que, ler as suas crónicas, é algo que me dá um prazer enorme.
E no fim da leitura das mesmas sinto-me mais enriquecida, certamente que, não tanto, como o Tiago quando termina cada uma das suas viagens pois o vivênciar as situações dá-nos algo que é impossível de obter apenas através da leitura.
É curioso quando diz, " Sempre que preciso de fazer o que designo de purga (social leia-se), sair da zona de conforto, faço uma viagem destas...".
Sinto imensas vezes essa necessidade, só tenho pena de não poder fazer o mesmo que o Tiago faz, sair da zona de conforto que muitas vezes só me proporciona um conforto aparente, e partir em busca de algo mais profundo, algo que me possa transformar de algum modo,ou que pelo menos me liberte das amarras da sociedade em que vivemos.
Tenho esperança que um dia o possa fazer :)
Continuação de boas viagens!
Beijinhos
Carla
Caro amigo,
Mais um belo post. Força nisso...ainda iremos fazer mais uns kms juntos!
Abraço daqueles,
rl
Um dos melhores e mais sentidos relatos que já lemos sobre uma peregrinação até Santiago. São palavras como as tuas que nos fazem ter vontade de seguir o Caminho! Parabéns, Tiago!
Forte abraço
Carla, compreendo o que diz, creio que todos já sentimos isso pelo menos um vez na vida. As crónicas que vou escrevendo são apenas aquilo que vou vendo ou sentindo. Publico-as porque gosto de partilhar informação, quem sabe se serão boas dicas para uma futura viagem.
Caro Rui, espero que ainda façamos uns bons kms juntos. Os bons tempos não são só para recordar, são para repetir. Um abraço.
Vagamundos, tenho a certeza que iriam gostar da experiência. Certamente iriam trazer crónicas e fotos belíssimas. Obrigado pelas vossas palavras e um abraço desta Lisboa 40ºC à sombra.
É realmente um prazer ler-te através de viagens Tiago; ao invés de 5 minutos de estudo viajei a Espanha, quase que senti bolhas nos pés assim como saboreei o delicioso (e afamado) polvo á gallega que tanto falas!!!
Um beijinho,
e vai nos trazendo noticias para la desses trilhos (trocadilho facil, contudo, contextualizado) :)
Obrigado Inês.
As bolhas não apareceram, ao invés do polvo.
Agora não é época para nos metermos a caminho. A menos que se seja um grande devoto. Aí sim há que chegar a Santiago no dia 25/7 em ano de Xacobeo.
O próximo é só daqui a 21 anos
Me ha gustado mucho tu relato y además básicamente es lo que yo sentí mientras hacia el camino, además de ganarme la amistad de gente como tu, es algo que te marca de por vida.
lástima que no entienda perfectamente el portugués.
un abrazo.
Gracias por tu comentario.
Yo tengo mas crónicas y informaciones sobre el Camiño.
Puedes comentar quando quieras.
Un abrazo
E que tal alargar as escolhas da sondagem? :)
Até porque isso daria azo a crónicas completamente novas, ou seja, sobre um local novo.
Gostei muito desta última crónica. Parecia mesmo um texto retirado de uma narrativa de viagens.
Desejo-te boas caminhadas e sobretudo que tenhas a oportunidade de as fazeres cada vez mais.
Bjs
Obrigado pelas tuas palavras.
Vai passando por aqui e comentando se te apetecer.
Sim, gostava de fazer um novo destino para além destes mas vamos ver como corre a vida profissional.
Infelizmente não posso viver de viajar e escrever sobre isso :)
Isso seria o ideial mas...
Quem diz que nao podes? se tens leitores "gratuitos" no blog, nada impede que os tenhas se escreveres um livro... para isso convem é viajar ainda mais para haver ainda mais historias... por isso toca a dar corda aos pes, ate porque me dava muito jeito saber o que oferecer as pessoas no Natal e pronto.. sempre me resolvias um pequeno problema... :) Eu prometo que vou ao lançamento.. no Chiado claro! entre Fnac e Bertrand deixo a tua escolha... :P
Era bom era.
Obrigado pela força.
Se um dia acontecer podes ter a certeza que te guardo um lugar na primeira fila.
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