segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Para lá do Caminho

Esta é o relato que escrevi para a Itinerante deste ano cujo tema era o Caminho de Santiago.
É a minha prenda de Natal para os milhões de seguidores do meu blog.
Peço-vos que se organizem e distribuam o acesso ao texto pelo dia para não bloquear o site da blogspot.
Bom Natal e um Ano de 2011 cheio de viagens para todos vós... e para mim também.

Para lá do Caminho

Páscoa de 2010. Estou no Caminho del Salvador, algures entre Léon e Oviedo. Olho à minha volta e procuro alguém. Não vejo vivalma. Só as montanhas, o vento, a neve e, aqui e ali um animal que foge à minha passagem.

A minha companhia são os meus pensamentos. A banda sonora é o som da minha respiração, do bastão a bater numa pedra do caminho, do clique do botão da máquina fotográfica que regista um momento que se deseja ser eterno.

O sentimento? Felicidade, plenitude, harmonia, paz interior.

Ao fundo vejo um povoado. As chaminés deitam fumo e quando me aproximo sinto aquele cheiro inconfundível a lenha queimada. No pasto, uma manada com bezerros aproxima-se. Por entre eles surge um cão pastor. Para ele não há Sexta-Feira Santa, todos os dias são dias de trabalho.

Atravesso a aldeia, vejo carros novos. São os filhos que regressam das cidades e vêm passar a quadra com os pais, recordar os sabores que faziam parte do seu quotidiano antes de serem absorvidos pela urbe, e purificar o corpo com aquele ar frio.

Os velhos não conseguem disfarçar a alegria. Fala-se com eles e os olhos brilham por sentir que alguém gosta da bica da sua fonte de onde sai a água do degelo, das pedras dos seus panaderos (tipo de espigueiro com mais de 4 pés), ou simplesmente porque perde (ou ganha) tempo falando com eles sobre os castanheiros do caminho.

Possivelmente nem se apercebem o quanto nos aquecem a alma, o quanto nos ensinam, o quanto lhes devemos por se manterem firmes naquela vida dura. Sem eles a paisagem fica sem sentido, sem vida.

Continuo encosta acima, em direcção à neblina. Recomeça a nevar, mas ao invés de ser desagradável, dá-nos uma inebriante sensação de bem-estar, de aventura. É o que dá viver à beira-mar; a simples diferença da água cair sob a forma sólida torna algo aborrecido na melhor das experiências.

Quando chego, espera-me um albergue quentinho, o sorriso sincero da hospitaleira, e apesar do cansaço uma enorme vontade de registar todas as memórias no diário de viagem.

Mas não há caderno onde se possa descrever tudo o que se viveu, nem palavras para explicar o que apenas se pode sentir.